Não sabemos quantas pessoas vivem em pobreza
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Apesar de haver muitos estudos estatísticos, um relatório mostra que todos esses estudos apenas se baseiam em conjeturas. Como poderemos então ter uma perceção informada dos níveis mundiais de pobreza?

Vivemos numa era de abundância de dados, mas os países em desenvolvimento estão a sofrer de uma escassez de dados grave: os governos e a comunidade internacional sabem menos sobre a parte mais pobre mundo do que pensam. Os números muitas vezes citados sobre os níveis de pobreza, saúde e educação em países pobres são pouco mais que conjeturas informadas, como mostra um novo relatório do Instituto de Desenvolvimento Estrangeiro (ODI), um think-tank independente com sede em Londres.

Enquanto o Banco Mundial estima que o número de pessoas a viver com menos de $1,25 por dia é de 1,01 mil milhões, o relatório afirma que o número pode chegar até 350 milhões a mais do que isso.

O relatório, que foi baseado principalmente em pesquisas secundárias, bases de dados disponíveis ao público, e entrevistas originais, também afirmam que os números da mortalidade materna na África subsaariana, em 2013, poderiam ser o dobro dos 133 000 indicados, e do número de pessoas a viver com VIH/AIDS poderia ter sido superestimado em 20%.

Elizabeth Stuart, uma investigadora do ODI, disse à Quartz:

"Tomamos por certo que as estatísticas são baseadas em fatos, e que estes são científicos ou empíricos, quando muitas vezes não o são – são estimativas ou negociações políticas."

Segundo o relatório, os fatos que ainda não se sabem incluem:

  • Quantas raparigas se casam antes dos 18 anos de idade;
  • A percentagem de pobres do mundo que são mulheres;
  • O número de crianças de rua em todo o mundo;
  • Quantas pessoas no mundo sofrem de fome.

Mas com essas lacunas, como podem os decisores políticos melhorar a vida das pessoas nos países mais pobres do mundo sem conhecer a escala dos problemas?

O tema da inclusão de dados está a ganhar força política, especialmente porque os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) estabelecidos pela ONU em 2000 – um conjunto de metas de desenvolvimento que incluem a redução para metade da pobreza extrema e a educação primária grátis universal – expiram este ano.

Um novo conjunto de metas chamadas Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ODM), estão a ser desenvolvidos atualmente para os substituir. Mas sem uma revisão radical da forma como os dados são obtidos e analisados, os ODM não serão capazes de alcançar o seu objetivo de "não deixar ninguém para trás", diz Stuart.

Razões para essa falta de dados

As populações dos países em desenvolvimento muitas vezes vivem em comunidades ou muito espalhadas ou muito densas, e em mudança, como as favelas urbanas, tornando os métodos tradicionais de obtenção de dados, como os censos e os inquéritos domiciliares, caros, muito pouco frequentes e potencialmente perigosos. Mais de 40% dos países da África subsaariana não participam num inquérito de informação há sete anos.

Por causa da forma como está pensada, a pesquisa domiciliar tradicional omite os sem-abrigo, pessoas em instituições, e aqueles em domicílios transitórios: ou seja, os mais vulneráveis. Os dados administrativos também são deficientes, com menos de metade dos países da América Latina e das Caraíbas e menos de 6% nos países da África sub-saariana a terem um registo completo de nascimentos e mortes.

Os Escritórios Nacionais de Estatística (ONGs) nos países em desenvolvimento não têm geralmente o investimento necessário, com falta de formação adequada das equipas na análise de dados, de acordo com o relatório. Rebecca Furst-Nichols, diretora do programa na Data2X, parte da Fundação das Nações Unidas, disse à Quartz:

"Os dados em si não vão beneficiar as pessoas, eles só vão beneficiar as pessoas se compreendidos e usados corretamente."

Os dados também são altamente políticos. Vejamos o recente censo da Birmânia, o primeiro em 30 anos: descobriu que havia menos nove milhões de pessoas no país do que os 60 milhões que declarou. Mas os funcionários do governo proibiram, controversamente, o povo Rohingya de se identificarem como tal, ou seja, o grupo étnico minoritário não seria contado a não ser que eles próprios se identificassem como nativos do Bangladesh.

Como Furst-Nichols explica, quando determinados grupos e comunidades são excluídos, os seus interesses não são servidos pelos decisores políticos. A Data2X examina como a obtenção de dados tradicional discrimina as mulheres nos países em desenvolvimento.

"Quando se trata de género, as mulheres têm sido sub-representadas porque não têm aparecido nos dados. Os dados não estão a ter em conta as vidas e potencial das mulheres", diz ela.

Apesar dos desafios, a grande quantidade de dados obtidos a partir de tecnologias, incluindo dispositivos móveis, satélites e drones, pode ser uma poderosa ferramenta utilizada juntamente com métodos de captura de informação tradicionais. Por exemplo, na Costa do Marfim, a empresa de telecomunicações Orange fornece os registos de dados de chamadas aos investigadores e universidades para encontrar soluções para os problemas de desenvolvimento no país. Depois da guerra civil na Libéria, a tecnologia móvel foi usada para criar um mapa livre de pontos de água potável, que está agora a ser integrado na resposta do país à crise da Ébola.

Mas privacidade continua a ser uma nuvem escura que ofusca este movimento, especialmente quando se trata de proteger os dados pessoais dos cidadãos de governos e grupos sem escrúpulos. Embora a redução do hiato de dados requeira que os setores público e privado colaborem, a regulamentação terá de acompanhar o ritmo das mudanças para proteger os cidadãos e garantir que estes dados possam ser usados de uma forma que realmente os beneficie.

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