E se as nossas teorias estiverem erradas?
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Questionamos três características bem estabelecidas da sociedade de hoje num exercício para nos lembrar que nem tudo o que é geralmente aceite está certo. E você, questiona muitas presunções no seu dia-a-dia?

Na Londres do séc. XIX todos concordavam que um ar poluído provocava doenças. Desde a cólera à praga: se alguém ficasse doente atribuía-se logo a causa à má qualidade do ar. A esta linha de pensamento denominava-se “teoria miasmática”.

Mapear todas as mortes de cólera provocadas por um surto que ocorreu em Soho não foi uma tarefa fácil. Retirado do The Sleepless Reader

Tal como o The Ghost Map relatou, John Snow precisou de muitos anos (que custaram milhares de vidas) para que finalmente se desaprovasse a teoria miasmática. Snow mapeou todas as mortes por cólera ocorridas em Londres e relacionou-as com a fonte de água dos falecidos e mesmo assim foram precisos anos para que a população acreditasse nele. Hoje em dia a teoria miasmática é amplamente vista pela sociedade geral como um sinónimo de crença pseudocientífica.

Um dos grandes problemas que Snow enfrentava era o facto de as outras pessoas não conseguirem ver os germes da cólera. Por isso, ele e a população do seu tempo eram forçados a medir outros fenómenos observáveis. A má qualidade do ar era bastante aparente, por isso é fácil de se perceber por que motivo lhe atribuíam tanto a culpa.

Felizmente, os meios de medição científica melhoraram bastante desde essa altura. É de se esperar que atualmente qualquer teoria científica que tenha falta de fundamentos em dados observáveis seja rapidamente descartada.

No entanto, é provável que ainda existam teorias miasmáticas em partes onde a nossa habilidade para realizar as medições ainda esteja muito atrasada. Este seria aparentemente o caso de muitas políticas socioeconómicas e jurídicas. Existem diversas variáveis impressionantes que contribuem para os resultados sociais e económicos, e o impacto de uma política pode variar imenso de uma comunidade para outra tendo em conta os seus recursos e bases específicas. Além disso, é extremamente difícil medir o impacto de tantas políticas.

E mesmo assim, as populações poderão valorizar esses resultados de formas diferentes. A verdadeira razão para a existência de políticas é para que existam debates públicos sobre quais dessas políticas vão originar os resultados que a sociedade como um todo considera serem os mais valiosos. É difícil prever com exatidão os resultados e vários segmentos da sociedade vão certamente atribuir valor às coisas de forma diferente.

Contudo, algumas políticas que são quase tidas como unanimemente aceites tornaram-se normas globais. São estas políticas que eu vejo como sendo potenciais miasmas modernos. Ideias às quais nos agarramos firmemente, que guiam a nossa ordem pública e que determinam o destino de milhares (ou mais) de pessoas em todo o mundo.

Mas e se estas ideias estiverem erradas? Aqui ficam três que acho que são dignas de avaliação.

1. Democracia constitucional

Sou um verdadeiro crente na autodeterminação das populações. Tanto que acho que certos conjuntos de valores criados para o governo há gerações atrás só deviam ter uma influência de referência no governo atual.

À medida que o governo americano vai ficando estagnado…

O problema da democracia constitucional é o facto de ser um conjunto de normas estáticas que rapidamente poderão tornar-se obsoletas num mundo em rápida mutação. O impasse atual das políticas americanas pode ser atribuído a variadíssimos fatores, desde a polarização política à influência cada vez maior do capital no sistema eleitoral. E os eruditos têm vindo a prever habilmente uma série de resultados desastrosos que aguardam o sistema americano.

A fé no sistema vai-se desmoronando. Por que não permitir reformas democráticas mais fáceis? Retirado do Gallup.

Todavia, quer sejam as causas desafiadoras ou as potenciais consequências calamitosas, o maior problema é sem dúvida o facto de o governo não ter capacidade para se autocorrigir. Pode-se dizer que a causa é a própria estrutura do governo ser definida de forma tão rigorosa, com a reforma democrática do governo por meio da participação dos cidadãos limitada por regras escritas há mais de 200 anos atrás.

Mas desde o final da Guerra Fria que a supremacia da democracia ocidental (nomeadamente a democracia americana) como forma padrão de governo tem sido pouco desafiada. Felizmente que antes que o tal colapso do sistema americano aconteça, podemos aperceber-nos de que a aderência dogmática às estruturas do governo existentes é, talvez, um miasma moderno e que ficaríamos melhor servidos se experimentássemos outras formas e modelos de governo democrático.

2. Livre circulação de capital e não de pessoas

A globalização tem vindo a ganhar o significado de promessa de prosperidade para uns e de exploração e desigualdade para outros. O significado que o conceito tem para cada pessoa é provavelmente definido pela categoria na qual cada um se insere na escala de prosperidade global.

As exceções à tendência são os países produtores de uma série de produtos que exigem uma grande competência. Retirado do Washington Post

Se se encontrar no final do espetro, que é de salientar que é grande maioria da população, não é muito bom.

Os trabalhadores menos competentes e mal pagos têm assistido a uma descida dos seus salários e nas suas condições de vida. Em países como o Bangladesh e o Camboja tem havido uma competição pelos trabalhadores de escalões mais baixos. Os salários têm caído numa corrida frenética para ser o mercado mais competitivo da indústria têxtil.

As empresas podem mover livremente as suas operações de um país para outro na busca de menos despesas. Se uma empresa se deslocasse, algo que poderia facilmente fazer visto que o capital circula livremente, as pessoas viam-se de repente sem trabalho, visto que não teriam capacidade para ir atrás dele. Por esse motivo, as pessoas aceitam sem grandes escolhas os baixos salários.

Do outro lado do espetro as coisas parecem ligeiramente diferentes. Se fizer parte de uma força de trabalho altamente qualificada, então é muito provável que a empresa queira que se desloque por um posto de trabalho. Só no sector tecnológico dos EUA isso é tão comum que as empresas estão a propor quase três vezes mais o número de candidatos que o número de vistos disponíveis. Uma vez que o trabalho competente é algo relativamente raro, as empresas são forçadas a contratar onde existe um fornecimento significativo, mesmo que esse fornecimento não satisfaça totalmente a procura. Como resultado, os trabalhadores desses sectores recebem altos salários, como acontece em Silicon Valley, uma vez que não existe trabalho qualificado suficiente para satisfazer a procura.

Assim sendo, as populações pobres de muitos países veem os seus salários diminuírem enquanto ouvem falar da existência de grandes prosperidades noutros locais. Mas mesmo que essas pessoas consigam reunir recursos para se deslocarem, várias restrições legais impedem-nas de viajar para onde pudessem encontrar uma vida melhor. As quase 2000 mortes ocorridas no Mar Mediterrâneo nos primeiros quatro meses de 2015 foram apenas um indicador de que esta política poderá ser tão mortífera como as teorias miasmáticas. Talvez esteja na altura de se ver como se pode equilibrar a circulação de capital e de pessoas.

3. Escolhas alimentares – especialmente o açúcar

A diabetes tipo 2 custa ao SNS e aos contribuintes britânicos £10 mil milhões de libras (mais de 13 mil milhões de euros) por ano. Aos EUA custa $245 mil milhões de dólares por ano, o que representa praticamente o PIB da Irlanda. E essa é apenas uma das muitas doenças derivadas das escolhas de estilos de vida.

Seja de quem for a culpa (se das pessoas que escolhem ter uma péssima alimentação, das empresas por venderem e influenciarem o consumo de alimentos pouco saudáveis ou do governo por falhar na educação das crianças) há claramente aqui um problema. E não se trata apenas de as pessoas viverem no meio da pobreza em países ricos, como é muitas vezes afirmado. Nos EUA, as pessoas com os maiores rendimentos são as que sofrem mais de obesidade. E pelo mundo, em países como a África do Sul, a Líbia, o Egito, o México e o Iraque, existem taxas de obesidade entre as mulheres mais elevadas do que nos EUA.

Quando as pessoas têm acesso a muitas calorias erradas, parece existir uma tendência para exagerarem no seu consumo. E no entanto, quando existem esforços para reduzir esses acessos, estes deparam-se com críticas e batalhas jurídicas, tal como os esforços em vão de Michael Bloomberg para reduzir o tamanho dos refrigerantes em Nova Iorque.

Para além dos impactos na saúde da livre escolha alimentar, também existem as implicações globais no clima. A indústria da pecuária contribui mais para a emissão de gases de estufa do que todos os meios de transporte juntos. E tal como os californianos descobriram recentemente com as amêndoas; um mercado global pode significar que recursos como a terra e a água são canalizados para longe dos habitantes para satisfazer a procura noutro lugar.

Com uma variedade de escolhas alimentares mais limitada – quer fosse autoimposta ou imposta externamente – podia-se conseguir atingir melhores resultados na área da saúde para a maioria da população e viver de uma forma mais sustentável no nosso planeta.

Em conclusão

Isto não quer dizer que penso que devemos lançar uma campanha para reverter estas políticas. Mas consigo imaginar um futuro em que, depois de olharmos para as evidências, chegamos à conclusão o quão absurdas eram para terem sido consideradas a norma. Mas se há uma lição que podemos tirar com o John Snow para além da importância da higiene pública, é sem dúvida alguma de que devemos questionar-nos sempre sobre as nossas crenças e testá-las em função de novas evidências que vamos encontrando.

Fonte: Medium

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