O negócio de ser Bowie
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David Bowie não só era um génio da música como também um tremendo visionário do mundo dos negócios.

David Bowie era daquela espécie rara de estrela rock em que não precisávamos de gostar da sua música para o admirar. Bowie era um visionário de negócios como aqueles que deram forma a Silicon Valley que simplesmente não viu qualquer interesse em criar empresas: o seu grande produto era ele próprio.

Bowie, nascido David Jones, morreu a 10 de janeiro com a idade de 69 anos. Um boémio que amealhou uma vasta fortuna graças, em parte, a medidas que tomou por instinto. Catalogá-las seria provavelmente um exercício fútil, mas vale a pena lembrarmo-nos de algumas delas com o mesmo espírito com que os seus fãs agora fazem tocar as suas músicas.

A decisão de David Bowie se dedicar ao rock foi o resultado de uma busca consciente por uma forma de aliar os negócios à criatividade. Eis como ele o descreveu numa entrevista dada à BBC:

“Eu queria ser lembrado como alguém que fosse uma pessoa que criasse modas, em vez de ser uma moda. Eu não quero ser moda, eu quero ser instigador de ideias novas. Eu queria animar despertar as pessoas para ideias e perspetivas novas. Por isso tive de tomar todas as decisões nesse sentido. Então, resolvi-me, e decidi usar o meio mais fácil para começar – o rock and roll, e adicionei pedaços a esse meio ao longo dos anos, de modo a que no final fosse o meu próprio meio.”

Isso explica a invenção constant por parte de Bowie de novas personagens de palco, mas não a sua habilidade de estar sempre um pouco à frente dos tempos.

Em 1973 ele matou Ziggy Stardust, provavelmente a mais elaborada das suas imagens de palco. 29 anos depois, quando as memórias do rock estavam prestes a descolar, leiloou o chamado “fato de Woodland Creature”, também conhecido como Fato do Coelho, um fato de pele pintado à mão por Kansai Yamamoto, que ele usou em palco durante a tournée Stardust. Acabou nas mãos de Kate Moss, e na verdade assenta-lhe bem: ela usou-o para receber um prémio em nome de Bowie em 2014.

A entidade que organizou o leilão foi a Bowienet, que Bowie fundou através da sua empresa, Ultrastar, em 19988 para “criar um ambiente onde não apenas os meus fãs, mas todos os fãs de música pudessem ser parte de um único ambiente onde vastos arquivos de música e informação pudessem ser acedidos, as opiniões trocadas e as ideias partilhadas,” disse ele. Por $19,99 por mês o site tornar-se-ia o fornecedor de serviço de internet para os subscritores, garantindo 20 megabytes para que eles criassem as suas próprias homepages, um endereço de e-mail do tipo “nome@davidbowie.com”, assim como música exclusiva e entrevistas. Estava também disponível uma opção mais barata de $5,95 para aqueles que não quisessem alterar o seu fornecedor de internet.

A ideia de fornecer Internet era típica para aqueles tempos, mas, em essência, Bowie estava a oferecer aos seus fãs uma proto-rede social quatro anos antes da Friendster e cinco anos antes do MySpace. Essa não foi a primeira inovação tecnológica que Bowie, o criador de modas, previu. Ele também pode ter tido a ideia de um serviço universal de “buffet de música”, uma espécie de jukebox celestial, anos antes de o Napster, o Spotify ou a Pandora serem fundados.

Paul Goldstein, atualmente professor de Direito na Universidade de Stanford, popularizou o termo no seu livro de 1994 “A Autoestrada do Copyright: de Gutenberg à Jukebox Celestial”. Mas ele ouviu o termo pela primeira vez no final dos anos 80 quando era consultor para a Associação da Indústria Discográfica da América. Bowie é a pessoa creditada com a possível autoria do conceito (apesar de na altura depender de satélites de órbita baixa em vez de servidores de computador) assim como o chefe da Warner Music Edgar Bronfman Junior. Mas Goldstein, de acordo com um perfil do fundador do Spotify Daniel Ek, não se lembra quem pela primeira vez lhe falou da ideia.

Mesmo se não foi Bowie a inventar a ideia da jukebox celestial, ele certamente sabia bem à frente do seu tempo, que o negócio da música iria passar por alterações traumáticas mas finalmente libertadoras. Ele disse ao New York Times em 2002 – um ano em que as vendas de CDs foram $12 mil milhões (esse número caiu para $1,9 mil milhões em 2014 devido à revolução digital):

“Eu nem sequer sei porque é que haveria de querer estar ligado a uma editora discográfica nos próximos anos, pois não me parece que as coisas funcionem através de editoras e sistemas de distribuição na mesma forma que funcionam agora. A transformação absoluta de tudo o que nunca pensámos sobre a música irá acontecer nos próximos 10 anos, e nada será capaz de a fazer parar. Não vejo absolutamente razão nenhuma para que finjamos que isso não irá acontecer. Eu estou completamente confiante que os direitos de autor, por exemplo, não irão mais existir daqui a 10 anos, e a propriedade de autor e intelectual irá pelo cano abaixo. A música será como a água corrente ou a eletricidade. Por isso aproveitem bem estes últimos anos porque nada disto irá acontecer novamente.”

Agora, claro, muitos músicos não veem qualquer vantagem em trabalhar com grandes editoras discográficas. Uma quantidade crescente de música é autoproduzida e autodistribuída ou lançada por pequenas empresas de nicho que são mais clubes sociais do que máquinas de gerar receitas. O seu estilo de vida é muitas vezes modelado no período de Berlim de Bowie. Em 1976, muito antes da emersão da cultura hipster, ele moveu-se para a área anónima de Schoeneberg, viveu com pouco e criou música atmosférica, de baixa energia, com uma forte componente eletrónica.

Perto da mesma altura, Bowie moveu a sua residência fiscal para a Suiça. Bowie desenvolveu uma aptidão financeira que poucos no seu campo igualavam. Em 1997 quando o mercado de securities estava limitado a ativos relativamente padrão como as hipotecas e os empréstimos automóveis, o “banqueiro do rock” David Pullman convenceu o cantor a segurar receitas futuras do seu catálogo.

Bowie precisava do negócio para comprar de volta direitos das suas canções de um ex-manager que se serviu dele quando a estrela rock estava mais interessada em cocaína do que em finanças. As royalties seguras tornaram-se conhecidas como “obrigações Bowie” (Pullman até registou essa marca, com a esperança de criar uma linha de produtos financeiros equivalentes a esse instrumento). De facto, Bowie vendeu as receitas futuras de 287 canções à Prudential Insurance, oferecendo um juro de 7,9% (1,53 pontos percentuais acima do que os bilhetes do Tesouro dos EUA pagavam nessa altura) nos $55 milhões que ele recebeu.

Apesar de outros artistas, incluindo James Brown e os Isley Brothers, também terem vendido obrigações baseadas em música, o negócio de obrigações Bowie de Pullman nunca arrancou porque o negócio da música afundou. As royalties futuras ainda hoje são vendidas, mas nenhuma das ofertas é tão cara como foi o catálogo de Bowie na altura. Assim o negócio de Bowie com Pullman foi um presságio tanto da desintegração da indústria musical tradicional (“aproveitem a vantagem destes últimos anos”) como do boom de securities exóticas que ajudou a originar a crise financeira global (1997 foi o ano em que a primeira obrigação sintética de dívida colateral foi emitida).

As obrigações Bowie foram classificados como apenas um nível acima do “lixo” pela Moody’s, à medida que as receitas da indústria afundavam, mas a Prudential manteve-as, e Bowie não perdeu os direitos sobre nenhuma das suas canções, sendo que a companhia de seguros provavelmente recebeu o pagamento total das receitas da empresa de propósito especial que deteve os direitos do catálogo por 10 anos. Tanto Bowie como o investidor ganharam com o negócio.

Mas esse não foi o caso de todos os seus empreendimentos: por exemplo, uma cooperação com um banco norte-americano num projeto bancário online, rotulado como “o primeiro banco privado da internet” não funcionou. Mesmo Bowiebanc.com, porém, estava à frente do seu tempo em 1999, quando foi lançado. O boom tecnológico-financeiro iria começar quase uma década mais tarde.

Os fãs de Bowie adoravam-no por outros motivos, claro, mas as ideias de negócios quase sobrenaturais foram produtos da mesma mente que criou “Space Oddity” e “Heroes”. Não é por acaso que Bowie, que rejeitou a maioria dos papéis em filmes que lhe foram oferecidos, concordou em fazer de Nikola Tesla, o grande inovador cuja herança foi apenas verdadeiramente apreciada depois da sua morte, no filme de 2006 “The Prestige” (O Prestígio). Ele conseguia ver o futuro de um modo mais claro do que a maioria das pessoas.

Bowie disse uma vez que não conseguia imaginar ser lembrado após 1000 anos. É difícil afirmar se ele estava errado ou certo sobre isso, mas apresentava o tipo de pensamento de longo prazo de que muito poucos outros são capazes.

Fonte: BloombergView

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