Dias cinzentos high-tech
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Descrevemos-lhe o dia comum de um trabalhador em Silicon Valley. Não ficará muito entusiasmado.

De manhã

Estamos em São Francisco, ou onde quer que seja. Silicon Valley é em São Francisco? Seja como for, provavelmente vive lá. Com as outras pessoas de tecnologia.

E, depois de ter saído da sua cama individual, provavelmente está agora no autocarro. Um autocarro da empresa. E registou o seu lugar no autocarro através do telemóvel. E está sentado ao lado de um/uma colega e comunica com ele/ela através do telemóvel. É um modelo que ainda não está disponível ao público, porque esta versão é um bocado mais fina que os telemóveis que estão disponíveis para o público. E também é capaz de reconhecer a sua íris.

A viagem para o escritório demora menos tempo do que o que gostaria. O edifício do escritório, desenhado para se parecer com um centro de lazer da década de 1970, situa-se numa poça de relva e o sol californiano (ou lá o que quer que seja) entra pela janela. Embora do exterior pareça que há muito vidro no edifício, no interior há muito poucas janelas.

Você sente-se obrigado a beber café porque o seu chefe gastou 10 mil dólares numa máquina de café que pode ser controlada por uma app do telemóvel. A máquina de café é também uma das “zonas sociais” da empresa, onde é obrigado a falar com quem lá estiver. Você queixa-se desta regra a uma mulher que nunca antes tinha visto. Ela sorri mas olha sobre o seu ombro enquanto você fala.

Leva o café para a secretária. Mas não é a sua secretária. É uma secretária “comunitária”. E, como perdeu tempo a falar com a mulher ao pé da máquina de café, agora só lhe resta a secretária do canto. Aquela que cheira a atum. E continua a cheirar a atum, apesar dos muitos emails que já enviou a queixar-se do cheiro a atum.

Você tira o portátil da mochila como se fosse uma tábua de skate. Apesar de estar seriamente fora de forma, tem o vago desejo de que fosse, de facto, uma tábua de skate. Ou uma caçadeira. Encaixa o portátil no suporte. Mas só ouve um clique em som de desaprovo. Perde dez minutos a tentar com que o monitor da secretária mostre a imagem do portátil. Mas não consegue. Abre a aplicação que usa para programar, qualquer que ela seja, e durante as próximas três horas pressiona a tecla do cursor para navegar entre linhas e linhas de números, cujo significado nem compreende totalmente. A determinada altura, é interrompido pela sua chefe que afirma estar farto da rotina diária, mas na verdade está ali apenas para confirmar que tomou o seu café da manhã.

“A rotina diária daria um bom nome para um café”, diz você, mas a sua chefe não ouviu.

Ela pergunta-lhe se vai jogar pela equipa de softball do seu departamento. Você responde-lhe que está com dores no pulso.

Almoço

Embora todos os membros da empresa comam na cantina, parece que as pessoas importantes estão sempre à frente na fila ou sentadas na melhor mesa, a que tem uma vista sobre o parque de estacionamento.

Você espera ao balcão da comida quente durante 15 minutos, passeando pelo Tinder, na esperança que as pessoas vejam o que está a fazer e isso as desencoraje de falar consigo. A mulher da máquina de café está parada ao pé do balcão das saladas. Ela sorri para os olhos de um homem bronzeado que trabalha no departamento de vendas. Ele tem uma barba rasa e uma salada na mão. Você apalpa o queixo. Adorava ser capaz de deixar crescer a barba.

A única coisa que resta no bar de comida quente é um risoto de cogumelos. Você odeia risoto de cogumelos, mas comer oferece às pessoas uma desculpa para estarem longe dos seus portáteis. Senta-se ao lado de um grupo de quatro pessoas que não reconhece. Eles ignoram-no. Continuam a discutir esta app que um deles instalou recentemente. O utilizador diz qual a frequência com que urina, durante quanto tempo e a cor, e, no final de cada semana, a app diz-lhe qual é a doença de que estará provavelmente a sofrer e prevê a data da sua morte. É então que sente uma afta, quando mete à boca uma colher com o risoto aquecido no micro-ondas. A afta está mesmo na ponta da língua.

De tarde

Regressa à secretária. Vai pelas escadas, porque conta como exercício. O resto do pessoal já regressou, e está preocupado que pode estar atrasado. Porém, a sua chefe não está por perto, e então abre a aplicação (qualquer que ela seja) que utiliza para programar. Pressiona o cursor para navegar através de linhas e linhas de números. Depois coça os tomates.

Recebe um email. É dos Recursos Humanos para lhe relembrar que há uma sessão de formação opcional amanhã após o trabalho, cuja não comparência iria parecer estranha. É acerca da saúde mental na indústria de tecnologia. A sua aplicação de email, qualquer que ela seja, adiciona automaticamente um lembrete no seu calendário. O seu telemóvel vibra a confirmar de que recebeu este lembrete.

Você navega através dos números. O ar condicionado murmura. Um telemóvel alheio começa a tocar, e alguém pede desculpa ao resto das pessoas. A determinada altura, considera ir à casa de banho, mas está preocupado que isso implique ter de falar com alguém. Além disso, o gangue da app da urina poderá estar na casa de banho. Eles ainda podem anotar a cor da sua urina.

Uma videochamada – a sua chefe. Ela está a sorrir. Parece estar numa sala numa parte do mundo muito mais solarenga que São Francisco, Silicon Valley, ou onde quer que você esteja. Mas o escritório dela é logo ao fundo do corredor. Ela só quer confirmar que tomou o seu café da tarde. Você mente e diz que sim. A cabeça dela sai da imagem por um segundo, enquanto consulta um aparelho eletrónico que não consegue ver. Ela diz que a máquina de café deve ter perdido o sinal de wi-fi, já que diz que você apenas tomou um café durante o dia e foi de manhã. Você aceita tomar outro café. A chefe pergunta-lhe se tomou uma decisão acerca da equipa de softball. Você murmura algo acerca dos seus pulsos.

Ao cair da noite

O autocarro está à espera no parque de estacionamento. No interior, vários auscultadores deixam escapar um som distante. Quando se senta, o banco faz um barulho. Parece o som de flatulência. Você olha em volta para ver se alguém ouviu. Todas as cabeças estão em baixo, como se estivessem a rezar.

Você abre o Twitter. Os seus dedos hesitam. Você fecha o Twitter. O sol já se está a pôr. O autocarro começa a sair do parque de estacionamento. Através do espelho, o seu olhar cruza-se com o do motorista. Ele olha para o outro lado.

Fonte: Medium

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